
por Daniel Toledo
“Com o suor do teu rosto comerá o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás”. Seja a partir de versos milenares sobre a criação do mundo ou mesmo de aspectos de nossa ordinária vida cotidiana, é certo que os transitórios ciclos da matéria parecem traduzir a experiência humana de modo mais fiel do que, por outro lado, a ilusória e propagandeada noção de permanência.
Pois é justamente a transitoriedade da experiência humana – e dos espaços que criamos – que parece interessar ao artista Alexandre Brandão, que encontrou no bairro Jardim Canadá, em Nova Lima, um prolífico laboratório de observação e ação sobre espaços, paisagens e arquiteturas de caráter essencialmente transitório. Caracterizada por uma urbanização recente, precária e em pleno curso, a região chamou a atenção do artista para os inúmeros lotes vagos, construções abandonadas e galpões industriais que atualmente compõem sua paisagem.
“É curioso perceber de que modo os lotes vagos criam, dentro da paisagem do bairro, um ambiente que ainda preserva certas relações com a natureza, mas, ao mesmo tempo, se mostra pronto para a ocupação humana. Trata-se de um lugar em que, apesar da urbanização, a terra, em seu estado natural, ainda está muito visível. E era justamente essa memória dos lotes vagos e das muitas placas de ‘vende-se’ e ‘aluga-se’ que eu tinha antes de me aproximar do bairro”, contextualiza o artista, fazendo referência à progressiva ocupação humana que caracteriza a região do Jardim Canadá e também, certamente, outras periferias urbanas em diferentes pontos do país.
Inicialmente atraído pelas paisagens naturais que servem como pano de fundo à vida no bairro, Brandão não tardou a mudar de planos e ampliar a própria visão sobre o que seria, em seu trabalho, tratado como paisagem. “Com o tempo, comecei a deixar a paisagem natural um pouco de lado e me voltar mais para a paisagem ocupada. Comecei a pensar no tipo de arquitetura que caracteriza esses galpões, nessa geometria que se insere na paisagem natural, e a torna uma espécie de pano de fundo”, explica.
“Uma parte importante do meu trabalho, então, foi pegar a bicicleta, sair andando pelo bairro e tirar fotos dos galpões. Durante esses passeios, passei a observar as tipologias desses galpões e gerar uma espécie de alfabeto que, mais tarde, seria devolvido ao domínio público”, completa Brandão, sobre as imagens que, a partir de então, serviram como referência à ação artística elaborada no decorrer da residência no JA.CA.
Ciclos naturais e artificiais. Se os galpões terminaram por substituir as montanhas como referências formais das imagens produzidas pelo artista, foi, por outro lado, justamente a terra, elemento constituinte daquela paisagem natural, o material escolhido por Brandão para devolver tais imagens ao cenário do bairro, por meio de placas instaladas em lotes e terrenos vazios. “Ao pintar detalhes desses galpões usando uma tinta a base de terra, é como se eu experimentasse uma fusão entre a paisagem natural do bairro e uma espécie de segunda natureza, que vem para substituí-la”, observa.
A partir dos primeiros experimentos usando tinta a base de terra sobre as mesmas placas de metal que costumam anunciar lotes para venda e aluguel, o artista percebe uma aproximação a processos sedimentares e pinturas rupestres, remetendo, ao mesmo tempo, a outros tempos geológicos e à poeira laranja que, devido à proximidade com a mineração, se acumula sobre objetos, muros, plantas e até mesmo placas de sinalização da região.
“Logo nos testes iniciais, percebi um parentesco muito evidente entre a terra e a ferrugem, dando a entender que, com a passagem do tempo e a ferrugem das placas, as imagens tendem, de fato, a se fundir com o fundo. Meu interesse, aliás, é justamente que as placas aos poucos se enferrujem, de modo que os desenhos vão sumindo, que as imagens vão se arruinando”, explica o artista, já prevendo futuras visitas ao bairro para acompanhar o processo de deterioração dos objetos.
No que toca as imagens temporariamente pintadas sobre as placas, uma segunda camada de leitura rapidamente chamou a atenção do artista. “Com o tempo, fui percebendo que formas arquitetônicas dos galpões muitas vezes se assemelham ao relevo artificial de algumas montanhas da região, já modificadas pela atividade da mineração. De algum modo, ambos remetem às formas da indústria, esse lugar da transformação da matéria. Com isso, em certo sentido, ao representar os galpões industriais, pude também representar as montanhas, retomando a ideia inicial da pesquisa”, observa.
O futuro não chegou. Percebidas pelo artista como ícones passados de futuros jamais alcançados, tanto as placas produzidas quanto a própria arquitetura do bairro recebem, em seu trabalho, um tratamento que subverte a mera funcionalidade, abrindo espaço para uma ampla gama de leituras e interpretações. “Ao me apropriar das placas de ‘vende-se’ como um possível suporte artístico, acabo borrando um pouco essa função informativa delas. No lugar disso, o que se abre é um pouco mais de espaço para devaneio, fantasia e estímulo para quem se depara com elas durante uma caminhada no bairro”, aposta.
Ao se apropriar de elementos que marcam fortemente a paisagem da região, o trabalho de Brandão chama atenção, simultaneamente, a diferentes pontas de uma simbólica cadeia produtiva. “De um lado, o barro, como uma matéria muito elementar. De outro, os edifícios, símbolos de determinada ideia de progresso, que supostamente estariam no final dessa cadeia. Lá na frente, entretanto, a ferrugem vai unir tudo”, lembra. Em referência aos nossos tempos, o trabalho destaca ainda a progressiva extensão dos ciclos da natureza e dos elementos que dela fazem parte. Caminhos cada vez mais longos – e que nem sempre se completam conforme o projeto.
Além de produzir e instalar tais placas em diferentes pontos do bairro, Brandão desenvolveu, também como resultado do processo de residência, uma espécie de roteiro turístico por supostos monumentos que, em sua visão, representariam a distópica arquitetura do bairro. Inspirado pelo texto “Um passeio pelos monumentos de Passaic, New Jersey”, de Robert Smithson, ele identificou, ao longo de suas andanças pelo Jardim Canadá, quatro edificações cujos processos de construção foram interrompidos antes de se completar.
“São espaços construídos que se baseiam em projetos, apontam para o futuro, mas, por outro lado, já estão se deteriorando, ou seja, apontando também para a própria ruína. Seja a partir de um lote invadido, uma casa abandonada ou um edifício tomado pela natureza, o que se constrói, muitas vezes, é a imagem de um futuro arruinado, abandonado e essencialmente distópico”, sintetiza, quem sabe mirando à impermanência e à incerteza que de muitos modos permeia nossas experiências individuais e sociais, tais como os planos e realizações que lançamos ao mundo.