Como lidar com a Indie.Gestão?
Francisca Caporali, Joana Meniconi e Samantha Moreira
A ideia de promover uma residência específica para quem está à frente da manutenção de um espaço autônomo começou a ganhar forma em 2011, quando nos conhecemos numa residência promovida pelo Capacete. Ao lado de outros artistas e propositores de iniciativas artísticas independentes, fomos convidadas a participar da residência em razão do trabalho que desenvolvíamos em nossos respectivos espaços, o JA.CA, fundado em 2010 na região metropolitana de Belo Horizonte, e o Ateliê Aberto, inaugurado em 1997 em Campinas.
Nos encontros da residência, começamos a amadurecer o pensamento sobre o papel ético e político dos espaços autônomos de arte no atual contexto brasileiro. Ali, compartilhamos experiências, desejos e visões de mundo e reconhecemos que as dificuldades enfrentadas na gestão cotidiana de nossos espaços eram comuns a outras iniciativas. Foi animador perceber que não estávamos sozinhas e que todo o esforço para manter abertos nossos espaços valia a pena.
O desejo de aprofundar as questões levantadas em 2011 e retomadas informalmente em encontros fortuitos e trocas de mensagens com outros artistas/gestores é o que motivou a proposição deste projeto. Partimos, então, da vontade de mapear, conhecer e compartilhar a diversidade dos centros artísticos autônomos, não vinculados a grandes instituições. Estabelecemos como princípios metodológicos a escuta, o intercâmbio de experiências e a construção colaborativa de conhecimento. Nos processos de seleção, nas visitas de diagnóstico e nos encontros da residência, buscamos respeitar a organicidade, a criatividade e os modos de fazer característicos de iniciativas independentes.
A cozinha e a mesa
A escolha pela metáfora da cozinha não foi à toa. Nosso interesse estava na hora das refeições, de cozinhar juntos, de trocar receitas, de colocar uma pitada na discussão, de misturar novos temperos, de sentar à mesa. A cozinha remete tanto aos bastidores, àquilo que está por detrás do que os espaços oferecem aos seus públicos, quanto ao modo como esses lugares são apropriados por quem cuida deles – o estar em torno da mesa é algo corriqueiro nos espaços autônomos.
A relação que estabelecemos com nossos espaços é marcada pela proximidade: é como se fossem continuação de nossas casas e das casas dos outros que ali frequentam – artistas, amigos, vizinhos, pessoas que chegam e que voltam. Abrimos nossas salas e também nossas cozinhas.
O filósofo Michel de Certeau, para exemplificar as noções de estratégia e tática, opõe a gastronomia à culinária e ao ato corriqueiro de cozinhar. As estratégias dizem respeito à ação de quem detém o poder, de quem estabelece as regras do jogo e tem domínio sobre o território. Trata-se, portanto, da lógica dominadora que está presente nos circuitos e mercados que envolvem a gastronomia. Já as táticas estão ligadas às ações de quem tem como campo de ação o lugar do outro, de quem procura brechas existentes na lógica dominadora para resistir e sobreviver – está, por isso, mais próxima da culinária. A tática é a resistência criativa que busca subverter a ordem de quem detém o poder econômico, político ou simbólico.
Como artistas/gestores, que mantemos espaços autônomos fora do grande circuito artístico e não temos propósito de alimentá-lo, somos cozinheiros que preparam refeições – muitas vezes inesquecíveis – com os ingredientes que planta- mos e aquilo que barganhamos na xepa.
Os ingredientes
Espaços como os nossos surgem da vontade e da obstinação de seus fundadores, que não raro são artistas com pouco conhecimento prévio do que implica ter uma estrutura física que oferece atividades artísticas públicas regulares. A manutenção de um espaço implica em uma série de questões, como o custeio das despesas fixas, a limpeza, a definição de uma programação, o acesso do público, o horário de funcionamento etc., de modo que problemas e soluções são descobertos com a prática da gestão do dia-a-dia.
Sofremos, por exemplo, com a instabilidade da captação de recursos financeiros e costumamos exercer várias funções ao mesmo tempo, o que prejudica o planejamento e a sistematização de questões importantes à nossa própria sustentabilidade. Por outro lado, a autonomia também nos permite conduzir as decisões de gestão de modo mais espontâneo, acolhendo demandas que são trazidas por quem usa o espaço e pelos contextos em que estamos inseridos. Há o reconhecimento de que os espaços autônomos cumprem, hoje, uma função política para o campo das artes visuais, pois oferecem uma programação dinâmica e abrigam artistas e projetos que ainda não são assimilados por instituições culturais maiores.
Possuímos vocações distintas e criamos arranjos diversos para a realização de nossas atividades, mas nos reconhecemos a partir das táticas adotadas para tentar sobreviver em um mundo com estruturas pouco abertas à inovação ou àquilo que escapa ao padrão. Por isso, no Indie.Gestão não buscamos por modelos prontos e importados de outras áreas, mas partimos de um fazer coletivo baseado nas trocas de experiências entre quem está à frente de iniciativas semelhantes às nossas.
O preparo
A residência promovida pelo Indie.Gestão compreendeu dois momentos: o diagnóstico, quando visitamos cada uma das sedes dos centros selecionados na convocatória lançada pelo projeto; e a residência, quando os representantes dos espaços conviveram, debateram e cozinharam juntos na sede do JA.CA.
Em abril de 2014, em uma apertada agenda de viagens, conhecemos de perto as pessoas, os espaços e os contextos de atuação de cinco iniciativas: Ateliê do Porto (Belém/PA), Barracão Maravilha (Rio de Janeiro/RJ), Elefante Centro Cultural (Brasília/DF), Espaço Fonte (Recife/PE) e Grafatório (Londrina/PR). Realizamos entrevistas e dinâmicas coletivas entre o grupo de artistas/gestores dos respectivos espaços. .
Observamos e sistematizamos aspectos como a relação entre a história de vida dos fundadores e as intenções de existência do espaço. Os dados ali colhidos, que subsidiaram a definição da programação da residência no JA.CA
A residência também teve como fruto uma publicação, organizada em formato de revista, pensada para ser lida e atualizada no decorrer do cotidiano de quem cuida e mantém uma iniciativa independente, com espaço físico aberto ao público e atividades de produção e circulação artística e cultural. Nela estão reunidas as sistematizações das conversas estabelecidas nos encontros e as representações criadas durante as dinâmicas comandadas por Daniel Toledo e Ricardo Portilho, que também conduziram a editoração do livro.
As refeições
A residência no JA.CA aconteceu no final de maio. Ao longo de oito dias, debatemos intensamente questões relacionadas à gestão de nossos espaços, em rodas de conversa e jantares coletivos preparados por duplas de cozinheiros a partir de ingredientes trazidos de suas localidades de origem.
Para compartilhar as refeições e somar às conversas, foram convidados amigos com vivência e entendimento sobre os esforços necessários para manter vivos os espaços. Nesses jantares, contamos com a companhia e as colaborações das pesquisadoras Flavia Vivacqua e Ana Luisa Lima, da gestora cultural Maria Helena Cunha e dos artistas/gestores Lilian Maus e Bruno Villela.
As conversas ultrapassaram os momentos previstos na programação e atravessaram o convívio cotidiano entre os re- sidentes, fazendo-se presentes nas caminhadas matinais, na cozinha, nos duelos de YouTube, nas descidas de carrinho de rolimã pela rua durante as madrugadas e nos intermináveis e deliciosos jantares… A experiência da imersão promovida pela residência reafirmou a importância do compartilhamento do ambiente doméstico na construção de afetos que intensificam e potencializam a criação de propostas coletivas.
Os anfitriões e os convidados
Na última sessão de debates, quando já havíamos desistido de encontrar uma denominação mais apropriada à nossa identidade do que “independência” ou “autonomia”, chegamos a um consenso de que somos movidos e estamos unidos pela “intencionalidade”. O termo “espaços intencionais” aceita e respeita nossas diferenças e particularidades, ao passo que dá conta de dizer da força dos propósitos que mantêm abertas as nossas casas. Abrimos nossos espaços para nos relacionar com o que nos rodeia, para ser “um lugar para”, de pouso e desdobramentos.
Os espaços intencionais são essencialmente lugares de encontros e possibilidades de convivência. Se não fosse assim, bastaria a mesa e a conexão com a internet…
Esperamos que as discussões aqui iniciadas fomentem uma leitura mais ampla sobre os espaços intencionais, hoje, no Brasil, e que contribuam com seu fortalecimento e sua continuidade.